Dor ignorada em Toledo: mãe perde o bebê e o intestino


Uma mulher de 26 anos, moradora de Toledo, teve sua vida drasticamente transformada após uma série de atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que ignoraram sintomas persistentes de dor abdominal. A falha na condução médica resultou em intervenções cirúrgicas mutilantes, internações recorrentes e, de forma ainda mais devastadora, na morte de seu filho recém-nascido, dois meses após o parto.
A história evidencia o caso de uma paciente que começou a sentir dores ainda em julho de 2022, quando deu entrada no Hospital Bom Jesus de Toledo com sangramento e dor após uma queda. Foi nesse momento que descobriu estar grávida de seis semanas.
Nos meses seguintes, a dor persistiu. Em outubro e dezembro de 2022, já com 17 semanas de gestação, ela voltou ao hospital, relatando dor no baixo ventre sem melhora. Em todas essas ocasiões, segundo o processo, foi atendida como “paciente obstétrica”, sem que fossem realizados exames que investigassem causas não ginecológicas para os sintomas.
Em 10 de janeiro de 2023, foi novamente levada ao hospital via SAMU, com “algia abdominal de forte intensidade”. Um hemograma apontou leucócitos em 11.770/mm³ — acima do valor de referência — sinal de processo infeccioso. Ainda assim, não houve ação médica específica.
Quatro dias depois, em 14 de janeiro de 2023, ela procurou novamente atendimento, desta vez em uma unidade de saúde em Mercedes/PR, relatando “dor abdominal com irradiação às costas” e “vontade de defecar, sem conseguir”. Foi transferida ao Hospital Bom Jesus às 23h54, onde deu entrada com quadro de “dor pélvica + dor lombar + constante”.
O atendimento inicial foi mais uma vez obstétrico. Às 05h42 do dia 15 foram colhidos exames laboratoriais, cujos resultados, impressos às 10h34, apontaram Leucócitos em 21.120/mm³ — mais do que o dobro do valor máximo normal. Mesmo assim, não houve definição de conduta médica até pelo menos as 14h00, conforme relatório de enfermagem. Às 19h, foi registrada taquicardia materna e a paciente já não conseguia se alimentar. Exames colhidos às 21h35 indicaram Leucócitos em 24.190/mm³ e Proteína C Reativa (PCR) em 94,55 mg/L, quase vinte vezes acima do normal. O laudo que diagnosticou megacólon tóxico — complicação grave e potencialmente letal — só foi emitido após as 22h.
A cirurgia de emergência — uma cesárea seguida de retossigmoidectomia e colectomia — só foi iniciada às 10h45 do dia seguinte, mais de 33 horas após a internação. A paciente foi entubada, precisou de transfusão de sangue e administração de drogas vasoativas. Segundo consta do processo, ela ficou em estado grave na UTI.
O bebê, nasceu com taquicardia fetal, presença de mecônio no líquido amniótico e desconforto respiratório precoce, e foi imediatamente internado na UTI neonatal. Após episódios de bradicardia, apneia, sepse e necessidade de transfusão, recebeu alta em 17 de fevereiro. Pouco depois, em 12 de março, voltou a ser internado no Hospital São Lucas, em Cascavel/PR, onde faleceu no dia 16 de março, sem que a causa exata da morte tenha sido esclarecida.
A mãe passou por nova cirurgia de reconstrução intestinal em julho de 2023, mas o quadro de obstruções intestinais se tornou crônico. Em abril, maio e junho de 2024, precisou de múltiplas internações e passou novamente a utilizar bolsa de colostomia. Em junho, foi submetida a colectomia e ileostomia terminal, desta vez por nova ocorrência de megacólon tóxico. O laudo cirúrgico descreve “necrose epitelial, isquemia e sepse de foco abdominal”.
No fim de junho, após apresentar secreção purulenta de forte odor na ferida operatória, precisou de nova internação para drenagem de abscesso. Recebeu alta apenas em 10 de julho de 2024.
Atualmente, a paciente convive com restrições severas alimentares e físicas, e foi oficialmente reconhecida como pessoa com deficiência física, conforme laudo incluído no processo. Precisa se alimentar a cada duas horas, evitar alimentos que possam causar obstrução, ingerir líquidos com cuidado para evitar desidratação e usar bolsa de ileostomia de forma permanente. A condição também alterou sua vida profissional: foi removida de suas funções originais na empresa onde trabalha, passando a atuar em setor adaptado.
A narrativa também destaca o sofrimento psicológico da mãe: o luto pelo filho, o sentimento de culpa, e as limitações cotidianas impostas pela ileostomia. Relatórios de atendimento psicológico anexados ao processo indicam forte abalo emocional e ansiedade com a autoimagem, medo de vazamentos e impactos sociais da bolsa de estomia.
Segundo o documento judicial, a falha foi sistemática: “a autora compareceu quatro vezes à instituição entre julho de 2022 e janeiro de 2023, queixando-se em todas as oportunidades de dor em baixo ventre e, em todas elas, foi tratada apenas como paciente obstétrica”. A investigação da dor só começou após sinais clínicos graves e exames alarmantes — já muitas horas depois da admissão hospitalar.
“A demora para a administração de tratamento adequado afetaram a vida da autora e também a de seu filho de forma definitiva e irreversível, com destaque para a condição de pessoa ostomizada (ileostomia de caráter definitivo) e para o óbito do bebê.”
Município transfere responsabilidade
Na contestação apresentada em 15 de julho de 2025, o Município de Toledo sustenta que não houve falha no atendimento médico prestado à paciente e que as equipes atuaram conforme os protocolos clínicos compatíveis com os sintomas relatados.
A defesa alega que a paciente foi submetida a exames laboratoriais, de imagem e a acompanhamento obstétrico, e que o diagnóstico de megacólon tóxico foi realizado apenas após manifestação mais clara dos sintomas. A partir desse momento, segundo o Município, foram adotadas todas as medidas necessárias, incluindo a realização de cirurgia de emergência.
Além de negar culpa, o Município afirma que os fatos narrados ocorreram no Hospital Bom Jesus/HOESP, e que o convênio de prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares de atenção à saúde pelo SUS foi firmado entre o hospital e a Secretaria Estadual de Saúde, e não com o Município. Por isso, sustenta que “o Estado do Paraná é o ente federado legítimo a figurar no polo passivo da demanda”.
A defesa também afirma que não há relação direta entre a conduta médica e as complicações posteriores da paciente ou a morte do recém-nascido, e requer a improcedência total da ação.
Fonte: CGN
Publicada em 24/07/2025